quinta-feira, 16 de setembro de 2010

AS PRIMEIRAS RELAÇÕES OBJETAIS

Profª: Rosilene Casabona Castanheira



1.      FASE ANOBJETAL:

Ao nascer, a criança não é capaz de distinguir-se do mundo que a circunda. É a “fase anobjetal” de Spitz; do “narcisismo primário” de Freud ou da “indiferenciação” de Hartman. Passa dormindo, ou em semivigia, 9/10 partes do dia, estando a décima restante cheia de vida e atividade. Essa atividade, em sua maior parte constituída de  reações negativas (exceção feita a ingestão de alimentos), mostra como a vida, nesses primeiros estágios é desagradável e estafante, e que leva o recém-nascido a buscar, na posição fetal (reflexo tônico-cervical) e no sono, a tranqüilidade, o “paraíso perdido” da vida intra-uterina. Para Spitz, ainda não possui ele a faculdade de percepção, representação ou volição, o que equivale a dizer que ainda não existe Ego ou Superego. Embora reaja a determinados estímulos, é incapaz de perceber seu caráter intrínseco ou extrínseco. Chora quando tem frio do mesmo modo que chora quando tem fome, sem nenhuma intenção real de comunicação. Não é ainda capaz de conferir ao objeto que alivia sua tensão o estatuto de objeto percebido.
      Somente para o fim do segundo mês, e quando tem fome, pode reconhecer o sinal do alimento. Esta resposta deixa de se efetuar, se o recém-nascido está saciado. É o que Spitz chama “conduta de orientação”: A estimulação peri-bucal produz uma discreta rotação da cabeça para a fonte ddo estímulo, acompanhada de abertura da boca. Após o 3º mês, embora ainda na dependência de uma pulsão interoceptiva ou de uma necessidade insatisfeita, a criança pode responder a sinais de alimentação a partir de um estímulo à distância, como a presença da mãe na hora de mamar ou o barulho da mamadeira.


2.      FASE DO OBJETO PRECURSOR:

Porém um fenômeno mais importante que também se observa a partir do 3º mês é a resposta do sorriso. A criança responde, deste modo, ao rosto humano que adquire um estatuto especial no seu mundo perceptivo. Tal resposta, no entanto, somente se observa se o rosto é apresentado de frente, fazendo certo movimento de inclinação pra diante e movendo os lábios. Trata-se mais da configuração perceptual, de uma gestalt apreendida em seus elementos superficiais desde que o rosto apresentado de perfil não produz a resposta, enquanto uma máscara, guardando os pré-requisitos citados, é capaz de produzi-la. Por esta razão éque Sptiz não fala em objeto mas em “objeto precursor” que relacionado à situação da alimentação associa a face materna ao contato da boca e à satisfação da necessidade. A presença do “sorriso” assinala que a criança atingiu a um nível que Spitz relaciona ao aparecimento do 1º organizador. Desse momento em diante um novo modo de ser, totalmente diferente do anterior, tem começo: a criança, afastando-se da percepção interior de suas vivências, aborda a percepção externa do ambiente que a cerca e põe as premissas necessárias de todas as suas relações sociais futuras.

3.      CONSTITUIÇÃO DO OBJETO PARCIAL:

Nesta fase, o seio ainda não é percebido como objeto real da pulsão. Embora constitua o suporte das gratificações, é percebido através da boca e da mão. Uma relação significativa será então estabelecida entre o seio que satisfaz, a necessidade biológica e o rosto materno. É na reconstituição imaginária deste objeto parcial, enquanto suporte da gratificação ou da frustração que se estabelecem as primeiras relações objetais.
4.      A FASE DO OBJETO PROPRIAMENTE DITO:

Segundo Spitz, a passagem do objeto “parcial” ao “total” marca uma outra fase na organização das relações de objeto. A partir do 6º mês de vida, a mãe será percebida como um objeto inteiro, independentemente das necessidades insatisfeitas. A percepção pura e simples do rosto materno é vivenciada agora como a continuação daquele estado de prazer (quiescência) experimentado anteriormente com o apaziguamento da forma. E só então que a criança passa a “estranhar” qualquer outro objeto que não seja a mãe; e esta discriminação nos mostra que ela estabeleceu uma verdadeira relação de objeto. Spitz considera essa recusa de contato com pessoas estranhas como o primeiro sinal de angústia real. É o que ele denomina angústia do 8º mês. A mãe, percebida como objeto inteiro, vai ser agora o depositário das pulsões libidinais e agressivas, conforme atenda ou frustre a criança, cujo ego é cada vez mais solicitado para manter o equílibrio nesse jogo de pulsões. É assim que além da maior ou menor força integradora do ego infantil, é o comportamento materno que vai permitir que a criança adquira a capacidade de suportar as frustrações e aceitar o princípio de realidade. Para Spitz, todos esses fenômenos imprimem um novo rumo na direção do desenvolvimento, razão por que fala aqui no aparecimento do 2º (elemento) organizador.

5.      CARÊNCIA AFETIVA PARCIAL (DEPRESSÃO ANACLÍTICA):

Privado bruscamente da mãe após a fase do objeto propriamente dito, a criança apresenta pouco a pouco uma série de sintomas que segundo Spitz aparecem na seguinte ordem:
      1º mês: a criança chora e se apega a quem lhe entra em contato;
            2º mês: o choro se transforma em “chios” ou “guinchos”, há perda de peso e parada do desenvolvimento;
3º mês: o menor rechassa qualquer contato. Aparece a posição
patognomônica (deitado com a boca para baixo). Insônia. Queda da resistência às infecções e rigidez da expressão facial.

            Depois do 3º mês se fixa a rigidez do rosto. O choro cessa e é transformado em gemidos estranhos. O retardo aumenta e se converte em letargia.
            Se a mãe é restituída, ou se consegue uma mãe substituta aceitável, antes que ocorra um período crítico, situado entre o fim do 3º e 5º mês, os transtornos desaparecerão com surpreendente rapidez.

6.      CARÊNCIA TOTAL:
Se a separação se efetua antes do estabelecimento da relação do “objeto propriamente dito”, a criança, além de passar rapidamente pelos estádios da privação parcial vistos anteriormente, apresenta um evidente retardo motor, uma manifesta passividade, coordenação ocular defeituosa, etc. O rendimento intelectual decresce a ponto de no 2º ano achar-se no nível da idiotia. Muitos, aos 4 anos, não andam ou mesmo não se põem de pé, e a mortalidade no primeiro ano de vida pode atingir proporções alarmantes.

7- TRANSTORNOS PSICOTÓXICOS:
            Sob este rótulo Spitz estuda a relação entre determinados padrões de comportamento materno e certos quadros psicossomáticos observados na infância. No quadro abaixo podemos ver cada uma das atitudes maternas e dos sintomas com ela relacionados.

Transtornos psicotóxicos
ATITUDES MATERNAS
ENFERMIDADES DEL NINÕ
1º Repulsa primaria ativa
Vômitos do recém nascido e enfermidades
2º Repulsa primaria passiva
Coma do recém nascido (Ribble)
3º solicitude primaria ansiosamente
exagerada
Cólicas do primeiro trimestre
4º Hostilidade disfrazada de angustia
Eccema infantil
5º Oscilação rápida entre afeto e a
hostilidade agressiva
Hipermotilidade
6º Saltos de humor cíclico
Jogos fecales
7ºHostilidade conscientemente compensada
Hipertímico agressivo de Bowlby
Carência emocional
1º Privação emocional parcial
Depressão analítica
2º Privação emocional total
Marasmo
           
A descrição dessas três formas de perturbações estudadas por Spitz bastaria para ilustrar a importância das relações objetais no desenvolvimento da criança. No entanto não poderíamos deixar de mencionar aqui a contribuição de Melaine Klein no que tange a essas primeiras relações objetais.
           
8.CONTRIBUIÇÃO DE MELANIE KLEIN:

Para Melaine Klein não haveria aquele período de “indiferenciação” ou “anobjetal”. Desde o início da vida a criança já dispõe de um ego rudimentar que, através da rejeição do desprazer (projeção) e assimilação do prazer (introjeção), procura manter o “princípio da constância”. Como nesses primeiros estágios da vida predomina os desejos e necessidades orais, o seio materno se afigura como o objeto capaz de satisfazer tais desejos e necessidades. A criança já teria então capacidade de ter fantasias sobre este objeto, posto que a fantasia para Klein é o representante psíquico da pulsão. Tanto suas pulsões eróticas (instinto de vida), como suas pulsões destrutivas (resultantes da frustração oral ou por uma deflexão do instinto de morte), teriam seus respectivos representantes psíquicos. Para isso, haveria uma “clivagem” do seio materno, num “seio bom” que é introjetado e num “seio mau”, seio frustrador, que é projetado (posição esquizo-paranóide). A criança livrar-se-ia assim da angústia oriunda de seus impulsos destruidores, projetando-os no seio mau, seio frustrador, que se transforma em objeto “persecutório”. O mesmo acontece com a “libido” que é também projetada no seio bom, num “objeto ideal”, a fim de manter com ele uma relação necessária à preservação da vida. Mas a dialética introjeção-projeção não fica aí. O “seio bom”, introjetado corre o risco de ser danificado pelos impulsos destrutivos e por essa razão é também projetado; do mesmo modo que o seio “mau” poderia ser introjetado, a fim de ser devidamente controlado. As coisas se tornam mais complexas quando a criança passa a perceber o seio bom e o seio mau não como dois objetos mas como um objeto inteiro, unificado na figura da mãe (posição depressiva). A criança descobre que tanto suas experiências boas como as suas experiências más não provinham de um “seio bom” ou de um “seio mau”, nem de um “mãe boa” ou de uma “mãe má”, mas de uma mesma pessoa. Passa então a temer haver destruído ou vir a destruir o objeto de seu amor. De seu desespero e seu sentimento de culpa, surge o desejo de restaurar o objeto destruído, o que tenta realizar através do mecanismo de reparação. “O conflito depressivo (Smirnoff) é uma luta constante entre as fantasias destruidoras e os desejos de reparação, ambos conseqüentes aos sentimentos de onipotência da criança. Somente então é capaz de distinguir suas fantasias da realidade. Todavia, a crença na onipotência de seus impulsos destrutivos e de suas reparações mágicas somente diminui, progressivamente, na medida em que a criança se defronta coma realidade da mãe, que sempre aparece após as ausências, independentemente de suas fantasias. No entanto a posição depressiva (Smirnoff) não é jamais completamente elaborada”. Os bons objetos externos  na vida do adulto simbolizam e contêm aspectos do bom objeto primitivo e a capacidade de afrontar as angústias posteriores da vida depende em muito do estabelecimento de boas relações objetais na posição depressiva.

9.  O TRAUMA PSÍQUICO E A REPRESSÃO DAS PULSÓES INFANTIS 
Uma determinada porção das pulsões sexuais e agressivas infantis não se envolve para sexualidade de agressão adulta nem se transforma em processos secundários pré-conscientes distantes dos instintos, mas permanece sem modificações – emparedada (reprimida) no Inconsciente. O estudo das intrusões transferenciais pré-conscientes provindas do Inconsciente revela que as pulsões reprimidas conservam suas qualidades de primitividade e sua intensidade original. Tendo explicado como os processos primários se convertem em processos secundários sob a influência das experiências de frustrações ideais, temos agora que nos voltar para o fato de que uma parte dos processos primários não participa desse desenvolvimento.
Como foi indicado na seção anterior a capacidade que tem o psiquismo infantil de aprender a distinguir entre a realidade e a alucinação (e assim de transformar as alucinações em recordações) ficará bloqueada se o bebê receber satisfação exagerada pi se for exposto a frustrações de intensidade traumática. As frustrações traumáticas das necessidades infantis ocorrem quando o período de espera excede a capacidade de tolerância do psiquismo da criança ou quando as gratificações oferecidas pelo ambiente são imprevisíveis, isto é, quando a alimentação é proporcionada de maneiras contraditórias. Em qualquer dos casos, o psiquismo infantil se afasta da realidade e se prende à gratificação auto-tranquilizadora através da fantasia. Não é provável encontrar-se a verdadeira superindulgência na fase mais primitiva do desenvolvimento psicológico; mas se ocorre, poderá impedir o desenvolvimento (fixação) ao deixar de proporcionar incentivo para que a criança aprenda a captar a realidade. Mais importante ainda é fato de que a superindulgência não é mantida pelo ambiente para sempre que uma mudança repentina na atitude materna (da superindulgência para a frustração) é experimentada como sendo traumática pelo psiquismo despreparado da criança.
As experiências traumáticas, como as experiências de frustração ideal, deixam registros de memória; mas no caso das frustrações traumáticas, as pulsões infantis e as recordações traumáticas associadas ficam emparedadas (repressão primária) sob a influência do desespero e da angústia primitivos. Uma vez que o psiquismo se esforça para evitar a recorrência do estado anterior de angústia e desespero, a repressão será mantida permanentemente em detrimento da diferenciação ulterior dos desejos reprimidos. Assim, a frustração traumática das pulsões produz um quisto psicológico de funcionamento pelo processo primário e de fixação psíquica à satisfação direta dos desejos, por exemplo, através da alucinação. Os conteúdos inconscientes que ficam isolados do ego pré-consciente não estão expostos à influência de novas experiências e são, portanto, incapazes de mudar (aprendizagem); em vez disso, seguindo as leis do processo primário, ocorrem tentativas infindavelmente repetidas de alcançar a satisfação imediata dos desejos através das alucinações ou de outros meios similares. Uma versão de uma experiência infantil que satisfaça simbolicamente um desejo que pode ser repetida interminavelmente pela vida afora, num mesmo sintoma histérico recorrente. Entretanto, uma vez que os impulsos infantis originais, bem como o contexto no qual foram despertados permanecem inconscientes, os desejos nunca será gratificado realisticamente nem poderá ser abandonado.
É muito difícil definir objetivamente o que constitui um trauma infantil: é uma tarefa psicológica que o psiquismo da criança não consegue integrar no sistema pré-consciente mais diferenciado, seja (a) por causa da intensidade da exigência; (b) por causa da imaturidade da organização psicológica; (c) por causa de uma sensibilidade transitória do psiquismo no momento em que a tarefa lhe é imposta; ou (d) por qualquer combinação destes fatores. Assim, o trauma é um conceito econômico em Psicanálise, referindo-se principalmente não ao conteúdo da experiência, mas a sua intensidade. O trauma é a superestimação, seja por supergratificação ou por superfrustração; envolve não somente aquilo que ocorre externamente, mas também a combinação dos acontecimentos externos com a organização psíquica mais interna. Embora haja determinados períodos na infância (mais freqüentemente correspondendo a um novo equilíbrio de forças psicológicas ainda inseguramente estabelecido após um surto de desenvolvimento) durante os quais o psiquismo está especialmente suscetível ao trauma, podemos seguramente dizer que a criança pequena está exposta ao trauma em todos os momentos.
O fator tempo constitui uma consideração particularmente importante e freqüentemente negligenciada no conceito econômico do trama. Não somente a idade da criança e o estágio de desenvolvimento em que se encontra são freqüentemente cruciais na determinação da gravidade de uma tarefa psicológica; o fato de se esperar que a criança realize o feito de concretizar rapidamente uma importante transição do processo primário para o processo secundário e o fato de se permitir que ela adquira as novas funções de maneira fracionada durante um período mais longo de tempo podem ser igualmente decisivos.
As experiências que não foram integradas ao pré-consciente durante a infância são mobilizadas novamente no curso do tratamento psicanalítico; mas agora, nesta reativação terapêutica, o paciente tem tempo de sobra para assimila-las gradualmente. O processo que se segue, durante o qual as recordações traumáticas são encaradas novamente e os desejos infantis são re-experimentados e lentamente abandonados, é chamado “elaboração”. Este processo tem sido comparado com o trabalho que tem o psiquismo durante o luto – a não ser no fato de que a pessoa que está de luto tem que abandonar um objeto amoroso do presente, enquanto que o paciente aprende que tem que se adiantar à esperança de satisfazer os desejos infantis não-modificados e abandonar os objetos do passado.
O inter-relacionamento da teoria e da prática e especialmente a influência das considerações psicoecônomicas mencionadas anteriormente sobre os procedimentos terapêuticos da Psicanálise podem ser mais esclarecidas ao focalizarmos o método da livre associação. A livre associação, geralmente, é descrita em termos negativos como o abandono do controle, a negligência da autocrítica, etc. Entretanto, a livre associação envolve mais do que o afrouxamento; nos pontos cruciais, ela põe em ação a capacidade de tolerar que determinados conteúdos mentais desagradáveis sejam admitidos à consciência, sejam percebidos e experimentados. Portanto, a livre associação exige esforço e perseverança a fim de realizar uma extensão gradual do reino do processo secundário. Mas alcançar uma organização psicológica idealmente acessível e transformado não é o objetivo da Psicanálise. O defeito do equipamento psicológico humano, a que Freud fez referência diversas vezes, não é a existência de uma barreira de repressão nem a dos mecanismos de defesa, mas sim a sua relativa inadequação. Portanto, a análise se esforça para estabelecer o domínio do processo secundário somente nos segmentos do psiquismo nos quais as defesas não deram resultados. Quando o dados de anammese da infância ou a evidência obtida dos sonhos indicam a existência de material reprimido que tem estado efetivamente contido por atividades defensivas socialmente aceitáveis e satisfatórias, não se faz na análise qualquer tentativa de despertar esses conflitos adormecidos. Se uma atitude violentamente hostil em direção a uma figura paterna tiver sido subjugada pela devoção a uma vida de trabalho no sentido de promover justiça social para as pessoas idosas, por exemplo, não há indicação para que se tente derrubar esse sistema ego-sintônico de valores, (a menos que haja hostilidade original) interferindo neste segmento de ajustamento psíquico. Assim, qualquer conteúdo reprimido, para o qual os mecanismos de defesa estejam firmemente estabelecidos, é deixado intacto. Uma atitude perfeccionista, no sentido de descobrir o reprimido, é, no mínimo, sinal de amadorismo; na verdade essa atitude pode estar traindo o fanático que, escondendo de si mesmo algum segredo, precisa estar vasculhando os segredos dos outros o tempo todo.



10. A“TEORIA DAS RELAÇÕES OBJETAIS DE OTTO F. KERNBERG:

            Termos ousados, difíceis, de iniciados: teoria das relações objetais interiorizadas. Assim foi batizada por Otto F Kernberg. Nitidamente assinalada pela teoria psicanalítica, segundo parecer do próprio criador, seria dotada, porém, de um grande mérito:
            “A meu ver, a teoria das relações objetais, já implícita nas obras de Freud, transcende toda escola ou grupo particular e representa um desenvolvimento psicanalítico geral ao qual autor de orientação muito diferente deram uma contribuição significativa”.
Parece-nos, portanto, particularmente útil mantê-la presente sobretudo pela visão sintética e abrangente, que está em condições de oferecer, em todo processo evolutivo (afetivo, cognitivo, de identidade pessoal, de relacionamento com outros, de abertura para as instâncias morais etc.)
            Em sentido lato, a teoria das relações objetais, própria da tradição psicanalítica, “apresenta o estudo psicanalítico da natureza e da origem das relações interpessoais, e da natureza e da origem das estruturas intrapsíquicas que derivam das relações interiorizadas do passado com os outros, que se fixam, se modificam e se reativam no contexto das relações interpessoais atuais”.
            Já a partir desta primeira definição se deduz, com certa clareza, que o “objeto”, ao qual se refere implicitamente, falando de “relações objetais” seja o “objeto humano”, isto é, o outro ou os outros que encontramos na vida, a partir do começo da própria existência humana (pensemos na mãe, no pai, nos irmãos). O que nos parece peculiar nesta teoria é a sua concentração.
“Na sua interiorização de relações interpessoais, na sua contribuição para desenvolvimento normais e patológicos do Ego e do Superego, e nas influências recíprocas das relações objetais intrapsíquicas e interpessoais”.
Para Kernberg, essa teoria pode ser tomada, mais precisamente, como um esboço conceitual que “salienta a formação de representações diádicas ou bipolares (imagens de si mesmo e do objeto), como reflexos do relacionamento originários bebê-mãe e o seu sucessivo desenvolvimento em relações interpessoais. Internas e externas diádicas, triangulares e múltiplas”.
Em palavras mais simples , trata-se de uma teoria que procura interpretar a estruturação da personalidade em seu impacto com os outros (dimensão interpessoal), a partir do primeiro relacionamento com a figura parenteral materna.
            São diversos os aspectos e as conseqüências úteis, derivados dessa teoria. A primeira entre todas, é proporcionar uma compreensão mais clara das formas graves da psicopatologia. Acreditamos que poderia nos oferecer uma ampla e geral compreensão das estruturas sobre as quais concretamente, a pessoa cresce e se desenvolve, ou se bloqueia e regride, em relação a si mesma, aos outros, às situações, às próprias aspirações profissionais e de projeto de vida, aos valores mais elevados, isto é, aos valores morais, religiosos, aos valores típicos da vocação cristã.


Apresentamos, pois, cinco fases ou estágios do desenvolvimento.


1ª Fase – “Autismo”normal- É definida como uma fase primária indiferenciada, corresponde ao primeiro mês de vida, onde o bebê ainda não é capaz de estabelecer um relacionamento com o objeto materno. Um bloqueio no desenvolvimento nesta fase compromete o relacionamento “simbólico” com a mãe. A ultima conseqüência disto: desenvolvimento de uma psicose autista.

  Fase – “Simbiose”normal – É definida como a fase das representações primárias, indiferenciadas, do objeto si mesmo. Tem início no segundo mês de vida e vai até o oitavo mês. Nesta fase estabelece um relacionamento do tipo “simbiotico” entre o si-mesmo (o bebê) e o objeto (mãe), entre a própria percepção e a percepção dos outros. Acontece a constelação “objeto-si-mesmo” indiferenciada. Se forma o influxo de experiências e registros que satisfazem o bebê, ou outra imagem de caráter oposto: “a representação má” do objeto-si-mesmo concentrada num tom afetivo primitivo, doloroso, fruto de experiência de integração sentidas como não gratificantes.
            “As experiências que ativam a representação do objeto-si-mesmo que satisfazem,  ativam também a atenção e motivam o aprendizado; tanto a satisfação como a frustração limitada contribuem para diferenciação gradual dos componentes do si-mesmo dos componentes do objeto na percepção que o bebê tem da interação com a mãe”.
            Fixar-se ou regredir nesta fase equivale a obstáculo ou perda da diferenciação dos confins do Ego, fenômeno característico da psicose simbiótica infantil, da esquizofrenia em adultos e das psicoses depressivas.

3ª Fase – Diferenciação entre si-mesmo e o objeto – É definida como a fase da diferenciação das representações do si-mesmo e das representações do objeto. Tem início entre o oitavo mês e completa-se aos três anos. Podemos caracteriza-LAS COMO A FASE DA “separação-individuação”. Durante o seu desenvolvimento estabelece-se o “reconhecimento” da mãe, e isto assinala o momento em que começa a delimitação do si-mesmo e do não-si-mesmo, do si-mesmo e dos objetos externos.
            Para que isso ocorra é necessário a diferenciação da imagem do si-mesmo da imagem do objeto dentro da  representação positiva do objeto-si-mesmo.
            A partir de um ângulo de globalidade, emerge que, no estabelecimento dos limites do Ego e do desenvolvimento geral dos processos cognitivos ainda não se estabelece um confronto, neste ponto de desenvolvimento da personalidade, um si-mesmo integrado ou um conceito integrado, com um Ego estável e relações e relações objetais totais.
            A fixação patológica e/ou a regressão nesta fase determina a organização da personalidade limítrofe.

4ª fase – Integração e desenvolvimento ulteriores – É definida como a fase da integração das representações do si-mesmo e do objeto e, ao mesmo tempo, do desenvolvimento  de estruturas intra-psiquicas de nível superior derivadas das relações objetais. Está situada entre o terceiro e o quarto ano de vida. Refere-se em termos psicanalíticos à fase edípica.
            São dois pontos centrais que caracterizam a própria fisionomia desta fase evolutiva:

O primeiro: é dado pela integração das representações positivas (carregadas de libido) e as negativas (carregado de agressividade) do si-mesmo. O mesmo ocorre em relação às imagens objetais que se transformam gradativamente em representações objetais “totais”. Há uma unificação e harmonização progressiva das imagens diversificadas do Ego (Eu-bom / Eu-mal), realizando a evolução de uma percepção do outro, menos fragmentada, mais completa, “total. Deste complicado processo de integração brota uma nova reestruturação dos mecanismos perceptivos e cognitivos; um aprofundamento e uma potencialização afetiva em sentido geral, uma modulação mais rica dos afetos e o desenvolvimento da capacidade de experimentar sentimentos de culpa num sentido mais especifico”.
O segundo: posto em  psicanalíticos, nesta fase o Ego, o Superego e o Id consolidam-se como estruturas intra-psiquicas globais, definidas. Se por um lado temos novas e mais realísticas representações do si-mesmo e do objeto, por outro desenvolvem-se representações de um si-mesmo e de um objeto ideais, antes inexistentes. Há uma integração do Superego como estrutura psíquica independente, uma instancia moral, ideal autônoma.
            Quais são as conseqüências no caso de um atraso ou uma regressão nesta fase? A psicopatologia característica da Quarta fase é representada pelas neuroses e pelo nível superior de organização da patologia do caráter, particularmente dos caracteres histéricos, obsessivo-compulsivo depressivo-masoquistas.

5ª Fase - Consolidação do Ego – É definida como a fase da consolidação da integração do Ego e do Superego. Isso favorece ulteriormente a integração e a consolidação da identidade do Ego. “Um si-mesmo integrado, um mundo instável de representações objetais interiorizadas, integradas e um conhecimento realista do si-mesmo reforçam-se reciprocamente. Quanto mais as representações se integram, tanto mais a percepção do si-mesmo numa situação particular corresponde a realidade total das interações do individuo com os outros, tanto maior se torna a capacidade de avaliar realisticamente os outros e de tornar aplasmar as próprias representações interiores com base nesses conceitos realistas.
            Este caminho de consolidação das estruturas intra-psiquicas é de interação com os outros só pode fortalecer e tornar a pessoa mais capacitada para enfrentar também “períodos de crise, como no caso de perdas, abandono, insucessos ou solidão”.
            Não se deve desconhecer a influencia da reciprocidade que se estabelece entre o conceito de si-mesmo (conjunto das representações do si-mesmo e das relações objetais interiorizadas, ou seja, a imagem que a pessoa tem de si mesma) e a estrutura do caráter (a imagem através da qual uma pessoa se representa a si mesma para outros). “Existe uma relação recíproca entre o conceito do si mesmo e a estrutura do caráter: quanto mais integrado o primeiro e quanto mais coerente e harmoniosa a Segunda, e, vice-versa, tanto mais integrada a estrutura do caráter, tanto maior a correspondência entre o conceito do si mesmo e o comportamento e a personalidade reais da forma como são experimentadas pelos outros”.

11. Uma Comparação da Importância Genética e Dinâmica de Fatores
Narcísicos e de Fatores Instintivos Objetais :

Na retrospectiva que estou fazendo, levantarei agora o problema de saber-se, ao prender nossa atenção ao narcisismo, não podemos estar correndo o risco de menosprezar as forças instintivas objetais na vida psíquica do homem. Temos de perguntar-nos se nossa ênfase na importância genética e dinâmica das vicissitudes da formação e da coesão do self não poderá levar a retirada da ênfase do papel crucial genético e dinâmico representado pelos investimentos instintivos objetais do complexo de Édipo no desenvolvimento normal e anormal.
Há pouco tempo, um colega mais moço que tem acompanhado com interesse meu trabalho sobre o narcisismo estudou as relações entre as gerações em nosso campo e, falando para geração de analistas que está surgindo, sugeriu que, o grupo mais antigo está ansioso, isso não se deve tanto a “que nós tenhamos crescidos, mas a que tenhamos saído diferentes” (Terman, 1972). Pareceu-me que a implicação evidente dessa declaração incisiva era de que a geração mais antiga estava menos preocupada com o perigo do desejo edipiano de matar do que com a privação no território narcísico – e senti-me fortemente inclinado a concordar com essa opinião. Mas comecei a ficar preocupado. Serei eu o flautista de Hamlin que conduz jovens para fora do terreno firme dos aspectos libidinais-objetais do complexo de Édipo? Será que os fatores pré-edípicos e narcísicos não serão precursores e filigramas? E será que a preocupação com esses fatores não se tornará um foco para as velhas resistências contra a plena aceitação da realidade emocional das paixões do drama edipiano? Por trás do medo pré-consciente de que a geração mais nova seja “diferente”, não estará o medo mais profundo e mais poderoso do desejo de matar, sendo a preocupação narcísica apenas um disfarce para encobri-lo?
Não tentarei discutir essa questão diretamente. Suponho que isso não será respondido na forma como o vemos agora, mas que algum dia será superado por uma reformulação do inter-relacionamento dos fatores causais no início da vida (acho que o trabalho do Gedo e Goldberg [1973], por exemplo, constitui importante passo nessa direção). Nesse meio tempo, devemos, sem preconceitos, estudar todos os dados analíticos – edípicos e pré-edípicos, instintivos-objetais e narcísicos – e determinar sua importância genética e evolutiva.
Vamos portanto evitar estabelecer uma escolha entre posições teóricas opostas em relação à questão da importância genética das experiência da criança pequena no território narcísico e no território instintivo objetal. Entretanto, um estudo de ambos os assuntos há de esclarecer a influência relativa que esses dois conjuntos de experiências primitivas exercem na infância mais tardia e na vida adulta. O primeiro tópico refere-se à importância da fase fundamental de desenvolvimento na qual o núcleo de um self coeso se cristaliza; o segundo trata do interjogo da patologia do self (patologia narcísica) com a patologia do conflito estrutural (patologia edipiana).

12. FASE ORAL E O DESMAME:

Como se pode depreender das contribuições de Spitz e Klein e como já o enfatizara Freud ao caracterizar a fase oral da libido, é através da boca que o menor experimenta a maior parte de seu prazer instintivo. Tal prazer pouco tem a ver com a satisfação nutritiva ou com o alívio da fome. Estas últimas têm sua finalidade biológica própria. O que Freud refere aqui é ao prazer resultante da sucção; prazer que para ele é de índole sexual e difere inteiramente do primeiro. De fato a sucção é observada depois de a criança estar saciada e tanto mais é intensa quanto menor tenha sido o esforço para obter o leite (maior orifício do mamilo ou do bico da mamadeira). Como prova de que a sucção é de índole sexual, Freud evoca que as sensações buco-labiais do beijo desencadeam sensações genitais e refere às pervesões sexuais do adulto onde a boca é utilizada no ato sexual. Se as sensações buco-labiais da criança não produzem uma resposta de aparelho genital, é porque  esse não está ainda suficientemente desenvolvido. E se o adulto perverso utiliza a boca no ato sexual é porque sofreu uma regressão a formas de satisfação infantis onde o seio materno é substituido pelo órgão sexual do parceiro. O predomínio destas sensações hedônicas (sexuais ou não) durante o período oral nos mostra a importância da maneira como se processa o desmame nos fins do 1º ano de vida. Quando o mesmo se processa bruscamente podem-se observar sinais gerais de ansiedade como insônia, prantos, crises de raiva ou enfermidades leves, como vômitos, diarréias, etc. Isto persiste até que a criança encontre novos canais para a expressão de seus instintos. Fortes barreiras seriam então levantadas, no sentido de impedir a expressão daqueles desejos ligados à fase oral. Se, mais adiante, essas barreiras desaparecem, observa-se um quadro de perversão sexual oral; se são bastantes fortes e os desejos orais, muito intensos (fixação ou regressão), pugnam por suplantá-la, observam-se então manifestações orais expressas em termos negativos como anorexia, náuseas, vômitos, etc.

Além dessas conseqüências “locais”, ligadas diretamente ao físico, outras mais gerais poderiam ser observadas. Um inadequado provimento de gratificações orais, qualquer que tenha sido a sua causa, tenderia à formação de um padrão de comportamento segundo o qual o indivíduo se sente sempre insatisfeito, menosprezado, injustiçado, mesmo quando as circunstâncias sejam favoráveis. Por outro lado, um suprimento lácteo abundante, ligado a outras gratificações orais, levariam o indivíduo a se sentir-se tranqüilo e confiante no futuro, mesmo quando não sejam muito favoráveis as circunstâncias. Como diz Abraham, “se não possui mais que cinco centavos hoje, e não tem maiores perspectivas de conseguir mais amanhã, gastará calmamente estes cincos centavos, certo de que alguma coisa ocorrerá para que possa satisfazer seu próximo desejo”.

13.A FASE ANAL-SÁDICA E OS INSTINTOS PARCIAIS:

A fase anal-sádica se estende dos fins do primeiro ano até os 2 anos e meio mais ou menos. Nela, a criança experimenta a maior parte de seu prazer instintivo através de sua função excretora e de seu comportamento cruel. Também aqui não se trata da sensação de alívio e bem-estar experimentados após a defecação, mas das excitações produzidas pela passagem dos excrementos pela empola ano-retal. Para Freud tais sensações são também de índole sexual. Como prova dessa afirmação evoca o fato de as excitações anais produzirem sensações genitais e se refere ao coito anal, pervesão observada em todos os povos, como regressão da libido a essa fase do desenvolvimento psicossexual. Assim sendo, é de fundamental importância a maneira como esses prazeres instintivos são manipulados pela educação. Como diz English, a criança não tem voz ativa no processo de desmame. Adapta-se ou acomoda-se à frustração sem poder impedi-la. Aqui não; a criança deve, ela mesma, conduzir-se em consonância com os desejos dos pais, abandonando a satisfação instintiva. Mas esse passo não é fácil. Pode durar de alguns meses a um ou dois anos. De início, o controle somente se realiza com a constante vigilância da mãe. Mais tarde, pode manter o controle se ela está em casa. Em seguida, mantê-lo-á mesmo que não o esteja, contanto que não se afaste muito tempo. Posteriormente, converte as aspirações maternas em parte de sua própria personalidade. Mesmo assim, se a criança é separada de sua mãe pode voltar aos velhos esquemas e deixar de se controlar-se. Numa etapa posterior as ordens incorporadas exercem sua influência sem ter conta a presença ou ausência da mãe. É por amor que a criança renuncia o seu prazer instintivo. Teme perder o amor materno se não o faz. Enquanto se adapta à educação higiênica o menor aceita a atitude de sua mãe com respeito aos seus excrementos passando a repudiá-los. Se sua mãe o aborrece, pode vingar-se dela defecando em lugar inapropriado. E é muito pouco o que a mãe pode fazer para controlar essa situação. O menor experimenta, então, a sensação de que nesse ponto é mais poderoso do que a mãe; de que pode dominá-la com suas atividades anais. É assim que o instinto de agressão (domínio sobre o objeto) se conecta com as funções anais, conferindo às mesmas um valor de instrumento daninho e destrutivo.

             Podemos assim deduzir a importância do treinamento esfincteriano na determinação de certos padrões de comportamento:
1.      Confere-se à educação higiênica um cuidado excessivo. A criança participa dessa atitude e desenvolve um idêntica preocupação com suas funções intestinais. O resultado é uma dificuldade em desprender-se das atenções e gratificações usufruídas com essa conduta e uma conseqüente fixação a esta etapa do desenvolvimento. Algumas afecções psicossomáticas, como diarréia, encoprese, enurese, etc. são assim determinadas;
2.      A educação higiênica é exageradamente severa e não leva em consideração que certos menores têm, constitucionalmente, uma maior necessidade de gratificações anais. Nestes casos a criança assimila a atitude da mãe, adquirindo rapidamente o controle esfincteriano e ao mesmo tempo, torna-se exageradamente limpa e escrupulosa. Assume um comportamento obsessivo de limpeza e de ordem não só em relação às fezes ou seus “elementos substitutos”, mas a todos os setores de sua vida pessoal que passam a ser controlados com a mesma severidade usada em sua educação para com o controle esfincteriano. Certas manifestações neuróticas de tipo obsessivo e certos tipos de personalidades compulsiva poderiam ser determinadas desta forma.
3.      Quando a educação é muito exigente e a criança não tem condições de atender às suas expectativas, o controle não é conseguido. O prazer instintivo, por sua vez, não é abandonado e o menor continua a usufruí-lo apesar dos castigos aplicados. Tais castigos lhe aliviam o sentimento de culpa em não atender os desígnos maternos e lhe permitem assim continuar se sujando. Este dinamismo explicaria determinado padrão de comportamento mediante o qual o indivíduo somente se permite alguma satisfação, mediante a permissão outorgada por alguma forma de castigo.
4.      A educação é ainda severa, mas a criança não se lhe submete totalmente. Mantém-se limpa, mas anula a intenção materna, não depositando os seus excrementos no lugar adequado. Retém as fezes e somente as expele quando bem o deseja. A constipação que sobrevém se traduz, psicologicamente, como um sentido de poder. O menor não se sente obrigado a desistir de nada do que deseje; torna-se do contra; mata na unha, isto é, sempre logra seus fins, por meio de uma resistência passiva. 


14.OS INSTINTOS PARCIAIS:

            São muitos conhecidos os prazeres instintivos que as crianças entre 3 e 4 anos experimentam em espiar objetos sexuais (espionagem); em exibir as genitálias (exibicionismo); em comporta-se de modo cruel (sadismo) ou de modo a ser castigado ou maltratado pelo objeto de amor (masoquismo). Por esta razão Freud considera a criança nessa idade como um “perverso polimorfo.
            Uma indevida manipulação destes “instintos parciais” é muito mais freqüente do que se costuma pensar, no que pese a tão propalada, distorcida, e por vezes caluniada “educação moderna”. Muitos sintomas tais como a timidez, a incapacidade de competir num plano mais agressivo, a pudicícia exagerada, o comportamento turbulento e provocador, etc. parecem encontrar as suas raízes na conduta de certos pais que não querem, não sabem ou não podem conduzir-se de modo mais natural e tranqüilo frente a esses impulsos que são de um modo geral de caráter transitório. Muitas vezes eles estão a serviço de mecanismos de defesa de importância fundamental para o bem-estar emocional da criança. É o que ocorre – para não citar mais do que um exemplo – com as meninas que de um modo geral passam por um período de exibicionismo, durante o qual costumam levantar as saias e querem mostrar-se nuas para que todos as admirem. É como se o fato de ser admirada lhe permitisse identificar-se aos que a olham. Como diz Dolto, “se a olham sem surpresa, é porque existe alguma coisa para ver – o sexo de um menino-. Se ela exibe “nada”, essa é a maneira de negar que ela não tem nada”.

15.A FASE FÁLICA , A MASTURBAÇÃO E A CURIOSIDADE SEXUAL:

A fase fálica:

Após o controle esfincteriano a criança passa a interessar-se pelos genitais e todas as funções a ele associadas. É a fase fálica do desenvolvimento libidinal. Como descreve Freud, “levando em consideração a situação anatômica da região genital, as excreções que aí se produzem, os cuidados higiênicos aos quais é submetida a criança por ocasião do asseio, impossível pensar que as sensações de prazer que (tanto no menino como na menina) esta região do corpo é capaz de produzir, passem despercebida e não despertem a necessidade de repetição”. A masturbação seria assim a conseqüência natural das satisfações e do interesse de que é revestido o “falo” nessa fase do desenvolvimento.

                        Masturbação:

Embora se fale num período de masturbação durante o aleitamento, é a masturbação observada nesta fase e aquela ocorrida na puberdade as que se revestem de um maior interesse clínico e evolutivo. Também aqui, como vimos nos instintos parciais, a criança não encontra por parte do adulto uma atitude de compreensão. É curioso notar como em nossa cultura existe uma tolerância bem maior para a manifestação das necessidades orais ou mesmo anais do que para a manipulação dos genitais. Se a criança é do sexo feminino, a repressão é ainda mais energética ou violenta. Muito embora a ignorância por parte dos pais, da importância de tais manipulações na genitalização da libido, seja um dos fatores determinantes de seu comportamento repressivo, a principal causa de tal comportamento reside sobretudo em seus próprios problemas sexuais que os levam a associar pecado e a vergonha. As conseqüências desse comportamento repressivo são fáceis de se prever, portanto toda a vida psíquica da criança, seus interesses, seus jogos, suas relações de objeto vão se centralizar nesta sexualidade genital.

                        Curiosidade sexual:

Inclusive a curiosidade da criança dessa idade gira em torno de temas sexuais, tais como a diferença dos sexos, a fecundação, a gravidez, o parto, a relação sexual entre os pais, etc. De modo geral a criança interpreta todos esses fenômenos à sua maneira e constrói suas próprias “teorias” de acordo com suas viv~encias libidinais. É assim que a diferença dos sexos é elaborada sob a primazia do falo (somente o órgão sexual masculino teria importância), a concepção se faria pela boca, através do beijo: o parto de efetuaria pelo ânus, a relação sexual entre os pais se processaria baseada numa concepção sádica do coito. Tudo isso, como diz Smirnoff, levanta o problema da educação sexual. Muito se tem escrito sobre a forma como deve procedê-la. Mas o que parece mais importante é que a informação dada pelos pais venha ajudar à criança a que tome consciência daquilo que já conhece de modo intuitivo. Desse modo não se trata de revelar algo sigiloso e inédito para a criança, de modo puramente intelectual e esquemático, minucioso e completo. A criança por certo não assimilaria esse tipo de informação. Ainda mais importante no modo como proceder à educação sexual é a atitude honesta e sincera dos pais quanto ao prazer sexual que geralmente é escotomizado nas informações como se fosse algo ilícito e valioso como o prazer de alimentar-se, eu a criança deve saber, a fim de evitar possíveis sentimentos de culpa; ou, mais precisamente, deve ouvir a fim de que tais sentimentos de culpa sejam aliviados. Uma educação sexual insincera ou mal conduzida poderia acarretar inibições posteriores não só na área sexual mas em outros setores da atividade pessoal como o social e o escolar.

O complexo de Édipo:

Ao abordarmos as “teorias sexuais da criança”, afirmamos que as “diferenças entre os sexos” se processam sob a primazia do falo. De fato, somente o órgão sexual masculino parece ter importância. O menino observando que a menina não possui um pênis como o seu, tenta “negar” essa diferença a princípio, mas logo depois imagina que ela tinha um órgão semelhante, do qual foi despojada. Teme que o mesmo lhe suceda como castigo pelos seus desejos de castrar o pai. A “angústia de castração” leva-o a reprimir os seus anseios de posse exclusiva da mãe e a livrar-se dos sentimentos de rivalidade e ciúmes endereçados ao pai, procurando identificar-se com ele. Dessa maneira tem lugar o aparecimento do superego que para Freud constitui-se no herdeiro do complexo de édipo. A imagem do pai projetado, dependendo do investimento sádico que lhe confere o menor, pode ser mais severa, intransigente e repressiva do que a sua imagem real. Daí por diante, a presença de um adulto que proíbe e interdita tem menos eficiência do que o sentimento de culpa que tem suporte a imagem paterna interiorizada. Este fato reveste-se de grande importância no que tange à formação de esquemas de comportamentos inadequados, ou aparecimento de sintomas e síndromes patólogicas.
Enquanto nos meninos a angústia de castração se observa em plena fase de dissolução do complexo de édipo, nas meninas a referida angústia as introduz no mencionado complexo. Consciente de sua inferioridade orgânica, a menina passa a desejar ter um filho, e, somente então, renuncia à rivalidade coma mãe e procura identificar-se com ela. Essa identificação pode oferecer dificuldades. Ou porque a mente, não se desprendendo da inveja do pênis, é incapaz de afrontar o conflito edipiano e de investir libidinalmente a zona erógena vaginal, ou porque o estilo de vida da mãe não lhe agrada, recusando-se, desse modo, identificar-se a uma imagem materna desvalorizada.

16.O PERÍODO DE LATÊNCIA:

A dissolução do complexo de édipo introduz a criança numa outra etapa do desenvolvimento denominada “período de latência”. As pulsões sexuais são de tal modo transformadas, que se torna  possível uma livre disponibilidade de energia pulsional que pode agora ser investida noutros objetos e orientada para outros fins. Segundo Freud, estes desvios das forças pulsionais de seus objetos sexuais e esta nova orientação é um dos importantes fatores do desenvolvimento da cultura. O fenômeno foi denominado “sublimação” e todos os autores se referem à sua importância na integração social do indivíduo, na formação das normas morais e na criatividade artística e pesquisa científica. Através da sublimação as pulsões primitivas são transformadas; a necessidade de possuir o objeto primário de amor é substituída pela aquisição de conhecimentos; a curiosidade sexual, convertida em interesse intelectual e a competição edipiana, em competições sociais e culturais. Mas se o complexo de édipo não tem uma solução satisfatória, permanecendo ativo e o indivíduo ainda luta contra suas pulsões primitivas, muitos transtornos podem surgir: dificuldades em assumir o papel concernente so próprio sexo (menino efeminado: menina virilóide); inibições da conduta social pela persistência da rivalidade frente ao progenitor do mesmo sexo; distúrbios da escolaridade por falta de interesse pelo estudo resultante da impossibilidade de investimento libidinal dos processos cognitivos, o aparecimento  de sintomas ou defesas inadequadas como formação reativa. Mas de um modo geral, comparado com as fases anteriores e com a puberdade que lhe sucede, o período da latência pode ser considerado – como o faz Mira  y Lopes  - um “oásis de paz afetiva” ao longo do processo evolutivo.

17. ADOLESCÊNCIA E O APARECIMENTO DE NOVAS RELAÇÕES     OBJETAIS:
Y        Conceito:

Poderíamos defenir a adolescência, de um modo genérico, como o período da vida que sucede a infância e se estende até a idade adulta. Seu início é marcado pela puberdade, mas a aparição desse fenômeno biológico não é mais que o começo de um processo contínuo e mais geral (sobre o duplo plano somático e psíquico) que vai prosseguir, durante vários anos, até a completa formação do adulto. Além de focalizar o duplo aspecto somático e psíquico da adolescência, esta definição tem a vantagem de não estipular limites precisos para este período da vida, considerando-o como uma fase de adaptação. E esta adaptação será tanto mais longa e difícil, quanto mais tumultuados hajam sido os primeiros estágios do desenvolvimento.
Y       O “estirão” prepuberal:

Observam-se, nessa fase de crescimento físico acelerado, de par com uma maior vitalidade organísmica, uma maior consciência de força, de autoconfiança e combatividade. Pois bem, com a “parada” desse crescimento, a mente de nosso jovem passa a ser ocupada por vivências, sensações e sentimentos bem diferentes daqueles supramencionados, como lassidão, debilidade, depressão, irritabilidade. Essa transformação vivencial tem uma forte repercussão na conduta do jovem que se torna desanimado, inquieto, incapaz de atender às exigências que lhe são impostas, isolado de seus companheiros. As causas dessa transformação parecem ser fundamentalmente físicas. Além de todas modificações experimentadas pelo seus sistemas músculo-esquelético e visceral, um fator novo entra em cena – o aparecimento de hormônios, até então estranhos ao seu organismo. Tudo isso produz no jovem uma modificação radical de sua “cenestesia”(sentimento, difuso e permanente que temos do estado de nosso próprio organismo). Mas apesar de difuso, apesar de vago, apesar de não levar à consciência dados nítidos e precisos como as sensações externas, a cenestesia, repercute profundamente no psíquismo do jovem. Com a modificação de  sua fórmula cenestésica, o jovem adolescente experimenta, como o dissemos, intensa transformação nos seus sentimentos existenciais. Com momentânea satisfação, uma vezes; outras com a vivência do estranho e do inédito, sua inquietude e seu desconcerto, têm assim uma origem biólogica. E é sobretudo aquela vivência do estranho e do inédito que o intranqüiliza e angustia. Os novos estados de sua alma não encontram equivalentes no seu passado; para a solução dos novos problemas, de nada valem os velhos hábitos tão laboriosamente formados no decurso da infância; para todas essas vivências só possui palavras inadequadas, tal o grau de subjectivismo de que estão elas impregnadas. Na vigência desse drama inexprimível, sentindo somente incompreensão da parte dos que o rodeiam, o jovem se recolhe, se retraí, se abate.
Os psicanalistas dão uma importância especial às modificações corporais observadas no estirão puberal. O jovem assiste perplexo e angustiado a esse processo invasor de crescimento físico. Tudo isso o obriga a buscar uma nova identidade e, o que é igualmente importante, a elaborar o luto do corpo infantil, a perda da ambigüidade sexual e dos pais da infância. Para Aberastury, todas essas transformações do corpo podem ser observadas através de desenhos realizados pelo jovem desta idade, o que confere a tais produções um grande valor diagnóstico. “São tão grandes as ansiedades persecutórias, confusionais e depressivas que deve enfrentar o puber diante desta nova situação que o mesmo se refugia, regressivamente, como numa trégua defensiva”.
Y       As novas relações objetais:

A sós consigo mesmo, sentindo o peso de sua inaudita solidão, o jovem não tarda em procurar caminhos que o levem de volta para os homens que o conduzam à aquisição de uma nova identidade. Esses caminhos são vários – atividade de grupo; atividade religiosa; atividade artística; atividades esportivas, etc. Mas um desses caminhos ele encontra nas “experiências amorosas”. Muito se tem escrito sobre essas experiências na idade juvenil. Focalizando o assunto de um modo puramente descritivo (baseando-se nos diários de seus pacientes), agrada-nos sobremaneira, a forma como Charlote Bülher enfeixa em 4 tipos principais as várias modalidades de relações amorosas observadas nesse estágio da vida – “a paixão, o flirt, os amores juvenis e as experiências sexuais”.  




                                               BIBLIOGRAFIA

FREUD, SIGMUND Obras Psicológicas Completas versão 2.0

ROUDINESCO, ELISABETH - Dicionário de Psicanálise, Jorge Zahar Editor, RJ-1997.

LAPLANCHE E PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise, Martins Fontes, SP-2000.

KAUFMANN, PIERRE – Primeiro Grande Dicionário Lacaniano, Jorge Zahar Editor, RJ-1996.

ZIMERMAN, DAVID E. – Fundamentos Psicanalíticos, Artmed, RS-1999.

CHEMAMA, ROLAND - Dicionário de Psicanálise Larousse, Artes Médicas, RS-1995.

NICOLA ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia – Martins Fontes, SP-2000

HANNS, LUIZ – Dicionário Comentado do Alemão de Freud, Imago, RJ-1996.

FENICHEL, OTTO, Teoria Psicanalítica das Neuroses, Atheneu, SP-2000

ZIMERMAN, DAVID E. – Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise, Artmed, RS-2001.

ETCHEGOYEN, HORÁCIO R. – Fundamentos da Técnica Psicanalítica – Artes Médicas-1987

ANZIEL, D – Auto-análise de Freud e a descoberta da técnica psicanalítica – Artes Médicas-1989.

GARCIA ROZA, LUIZ ALFREDO – Freud e o Inconsciente, Zahar – 1984.

RAVAGLIOLI, ALESSANDRO M. – Paulinas-1999.
 
 
 


PSICANALISAR E EDUCAR OU PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO? Um Retorno a FREUD.

Rinaldo Voltolini


Qual o destino do campo da Psicanálise e Educação?
A existência da “Revista de Pedagogia psicanalítica” (Zeitschrift für psychoanalytische pädagogik), apoiada por Freud, que publicou durante os anos de 1926 a 1937 mais de 300  textos de analistas e outros autores que se dedicaram ao assunto, indicava a pujança desta articulação.
A extinção desta revista, sem a retomada de qualquer projeto equivalente, poderia alimentar a hipótese, já bastante hegemônica nos dias de hoje entre os analistas, de que a esperança na articulação dos dois campos em questão sucumbiu, graças às reformulações ulteriores da teoria psicanalítica, não fosse o fato de que após o grande lapso de silêncio que se seguiu a este momento inicial, ressurgiu, mais recentemente, um interesse crescente dos educadores pela teoria psicanalítica.
Por certo que este interesse se explica, inicialmente, pelo fato de que a Psicanálise é apresentada através da Psicologia, como parte desta, que, por sua vez, ainda reina absoluta entre as preferências da Pedagogia em seu projeto de tornar-se científica. Mas isso não tem impedido, por exemplo, que uma parte significativa de educadores desenvolva um interesse particular para prosseguir seus estudos no interior da conexão Psicanálise e Educação, buscando cursos nos quais esta temática é trabalhada sem sua costumeira psicologização.   
O fato é que isto reacende, pelo menos para os psicanalistas envolvidos nesta particular transmissão da psicanálise a quem não pretende ser psicanalista, a questão sobre sua pertinência, sobre as vicissitudes desta relação, tão sob suspeita para os psicanalistas que temem, como Freud e Lacan, a descaracterização de sua disciplina.
O sutil limite entre a divulgação, inevitável à manutenção no mundo de qualquer disciplina e a vulgarização e pasteurização de seu rigor teórico, fruto de variados interesses, aquece as mais controversas discussões. Mas o risco implicado neste sutil limite deveria ser enfrentado, como o fez Freud, em vez de evitado pela esquiva que busca um suposto abrigo desejado, que muitas vezes não é senão a clausura dogmática, fatal para o destino da Psicanálise na cultura.Quando uma disciplina se fecha para seu papel social e para a discussão com seu exterior, preocupando-se apenas com sua reprodução, ela enfraquece.
Mais uma vez, as pistas para este enfrentamento estão fundamentalmente em Freud. É preciso retornar a Freud, também nesta questão, pelo menos para retomar com ele a habilidade em enfrentar os dois riscos mais temidos, em se tratando das viagens da Psicanálise para as terras alheias, a saber: o risco do amadorismo, inevitável da parte do psicanalista com relação ao campo alheio e a perda do fio de Ariadne que mantém o psicanalista fiel ao rigor de sua teoria.

“Assunto encerrado!”: Millot e a “trama dos conceitos”(1)

Qual o estatuto da educação na obra psicanalítica? Para muitos esta questão nem sequer teria pertinência, não fosse o fato de que o próprio Freud abordou o assunto da Educação. De todas as incursões feitas pelo pai da Psicanálise em terras alheias, com destaque para arte, a literatura, a filosofia, a antropologia e mesmo a mitologia, a da Educação certamente é a que goza de menos prestígio.
É freqüente encontrar Goethe, Joyce, Levy Strauss, Dostoievsky, Hegel, Aristóteles, Dali e Picasso, citados com reverência nos textos produzidos no interior do campo psicanalítico.
Mais raro, porém, de fato quase inexistente, é encontrar Rousseau com seu Emílio, Piaget e suas discussões sobre o sujeito epistêmico, ou seu inconsciente cognitivo por exemplo,  citados  para esclarecer, fomentar, evidenciar uma questão qualquer que interessa ao campo psicanalítico. Ou seja, os psicanalistas não parecem acreditar que autores expoentes do campo educativo possam trazer questões relevantes ao campo psicanalítico.
Talvez isso se deva a herança recebida de Freud, que sempre ressaltou com admiração o que tinha aprendido nas excursões que fez pela literatura, mitologia, etc., exceto na educação, terra em que ele entendia que a Psicanálise tinha a ensinar.
Tanto Freud como Lacan foram entusiastas propositores da idéia de que os psicanalistas deveriam contemplar a erudição em sua formação, não por pedantismo ou por necessidade retórica, mas para possibilitar o alargamento dos horizontes e evitar a tendência ao conservadorismo dogmático, fatal para o trabalho analítico, seja o clínico ou o teórico.
Por acaso, não haveria nos autores que se dedicaram ao tema da Educação, nada que possa interessar aos psicanalistas na elaboração de suas próprias questões, ou, antes, devemos supor que a razão deste desinteresse é de outra ordem? De fato, quantos psicanalistas leram o livro de Pfister, ou o de Aichorn, além do prefácio feito a ele por Freud?
Tal desinteresse bem poderia ter sido creditado à falta de proximidade e de afinidade de questões entre estes campos, como é o caso da Psicanálise com a Física, ou a Química, por exemplo. Afinal, não precisamos pretender que a Psicanálise leve tudo em consideração.
Mas, neste caso, seria preciso desconsiderar o fato de que o próprio Freud se dedicou ao assunto, explicitando e discutindo uma afinidade, diferentemente dos exemplos citados.
Isso denuncia algum tipo de proximidade entre os campos da Psicanálise e Educação. Daí a pertinência da questão:qual o estatuto da Educação na Psicanálise?
Que Freud tenha se dedicado ao assunto da Educação resultou e ainda resulta, para a maioria dos psicanalistas, um fato embaraçoso. Principalmente quando ele definia como chegou a fazer inúmeras vezes no início de sua obra, o processo analítico como uma sorte de reeducação, ou de pós-educação.
A confusão dos dois registros, educar e psicanalisar, tão laboriosamente discernidos pelo analista é o pano de fundo deste embaraço. Embaraço que deve ter sido, muito provavelmente, a razão pela qual a psicanálise com crianças sempre gozou de um status menos privilegiado na comunidade analítica, uma vez que neste campo era mais arriscado incorrer numa posição educativa.
A proximidade e a diferença entre estes dois registros, ainda que Freud tivesse, a posteriori, conseguido discernir o específico de cada posição, não cessa de não se escrever. Isso porque o fato de que ela tenha sido resolvida teoricamente não elimina a possibilidade de que o analista, durante seu trabalho, seja levado a escorregar para esta posição, dada sua proximidade.
Um quarto de giro apenas, nos discursos elaborados por Lacan (1969-70), separam o analista do educador.
Educar e governar, poderíamos dizer, são as primeiras tentações do psicanalista, quando tem dificuldades para sustentar sua posição, o que explica o parentesco estabelecido entre elas no conhecido aforismo freudiano sobre os três impossíveis.
Lacan (1998) destacou e analisou ambos os riscos em seu texto: A direção do tratamento e os princípios de seu poder.
Quando o analista, em vez de dirigir a cura, dirige o sujeito, governa. Se em vez de levar o analisante a identificar-se com seu próprio sintoma no fim da análise, o leva a identificar-se com o analista, educa.
De certo modo, a história da elaboração teórica da Psicanálise  demonstra que o psicanalista precisa do educador, assim como do governante, para se definir como psicanalista, por sua mínima diferença.
Todos sabemos, desde Freud, o que gera a política da mínima diferença: a guerra.
Talvez esta tensão, típica da mínima diferença, explique porque um livro como o de Catherine Millot: “Freud antipedagogo” (Millot 1987), tenha se tornado, entre nós, um clássico sobre o assunto da Psicanálise e Educação. A presença do termo anti, no título do livro, já não seria um indício de rivalidade?
Em seu percurso, Millot realiza Um particular retorno a Freud, bussolado por Lacan, no qual ela perpassa os textos em que ele se pronuncia diretamente sobre a Educação, bem como os outros em que corre uma discussão paralela, decisiva para suas reflexões sobre a questão educativa.
O livro conclui pela irredutível diferença que há entre o psicanalisar e o educar, cuja conseqüência imediata é a de que não devemos esperar por nenhum método pedagógico de base psicanalítica.
Conclusão acertada, sem dúvida, construída através de um percurso rigoroso feito pela autora, acompanhando a trama dos conceitos da teoria psicanalítica. Mas é curioso que o que era para ser um instante de ver tenha se tornado o momento de concluir.
Que a Psicanálise não tenha um método pedagógico a oferecer à Pedagogia, não precisa levar a conclusão de que ela nada tem a dizer à Educação. Uma série de mal entendidos estão presentes nesta passagem, dos quais cito apenas os mais relevantes: a desconsideração da diferença entre Pedagogia e Educação; a crença na predominância da questão da metodologia em Educação; o entendimento de que a relação entre Psicanálise e Educação é de aplicação.
Interessa-nos, sobretudo, destacar o efeito de silenciamento gerado pela repercussão deste livro, quanto à questão das relações entre a Psicanálise e a Educação. Tendo se tornado um clássico, é no mínimo curioso e revelador que sua própria autora nunca mais tenha se dedicado ao assunto em publicações posteriores. “Assunto encerrado”!

“Um” retorno a Freud: Lacan e o “drama dos conceitos”

A expressão retornar a Freud tornou-se emblemática do projeto lacaniano para a Psicanálise. Em geral, ela é usada para marcar o retorno necessário a rota freudiana que se reputa ter sido abandonada ou desviada. Sabemos que esta expressão representa, no mínimo, duas coisas extremamente imbricadas entre si: uma estratégia política e um projeto ético e teórico.
Uma estratégia política, porque serviu a Lacan para apontar sua filiação a Freud, da qual recusou perenemente ser desvinculado. Lacan não admitia ser visto como dissidente, a semelhança do que aconteceu com Jung, Reich e outros, por isso precisava demonstrar as provas de sua filiação, bem como responder aos argumentos que lhe identificavam como fora do campo freudiano.
Seu primeiro seminário dado depois de sua não admissão na instituição psicanalítica francesa, que resolvera anexar-se a IPA, esteve fortemente marcado pela necessidade de afirmar-se freudiano. Os quatro conceitos da Psicanálise, Seminário XI (Lacan 1964) serviam para mostrar, entre outras coisas, como entendia os quatro conceitos básicos, fora dos quais não se poderia dizer inscrito no campo freudiano.
Mas para se mostrar em consonância com a proposta freudiana não bastava demonstrar o entendimento dos conceitos, era necessário, sobretudo, “interpretar” a crítica que lhe faziam.
Todos sabemos que a base desta interpretação recaiu sobre a identificação dos críticos a um dogmatismo religioso, marcado pela ironia do termo excomunhão, usado por Lacan na primeira aula deste seminário, para se referir a seu processo de exclusão da IPA.
A expressão retornar a Freud, dizíamos, significa também um projeto ético e teórico, a medida em que é com Lacan, autor da expressão, que fica destacado que não se pode entender Freud sem dessacralizá-lo, sem utilizar com ele, na leitura de sua obra, o próprio princípio tão evidenciado pela psicanálise de que o homem afeta a obra. Fato que implica em levar em consideração o sujeito Freud, seus impasses e conflitos.
Retornar a Freud visava, sobretudo, criar uma condição para poder superá-lo transferencialmente, sem ficar condenado a repeti-lo gargarejicamente, imitá-lo,  recaindo num inevitável dogmatismo conservador.
Retornar não é o mesmo que regredir, nem repetir. De modo algum pode ser reduzido a uma mera instalação de uma outra posição, mais verdadeira ou fiel que aquela que se desviou. Esta expressão pretende marcar, prioritariamente, uma leitura libertadora, daquela liberdade que vem quando podemos fazer alguma coisa com aquilo que recebemos de nossos pais. Mas só se pode fazer algo próprio quando se elaborou a herança recebida, de modo a não sucumbir na mera repetição dela.
Neste sentido, a crença de ser mais freudiano que os outros não passa de um subproduto indesejado da tentativa de retornar a Freud, uma adesão sintomática ao texto dele, o que bem parece ficar demonstrado pela prática constante do anátema (isso não é Psicanálise) no meio analítico, que não indica outra coisa que a disputa pelo lugar do filho dileto do pai. 
A própria idéia de desvio, tantas vezes aludida por vários lacanianos acerca dos pós-freudianos, merece ser relativizada. Um desvio, desde Freud, não pode ser reduzido a uma distorção aleatória, fruto de uma dificuldade particular de entendimento. Não é erro é equivocação e, portanto, é preciso considerar sua necessária vinculação a uma conveniência sintomática.
A instalação das várias derivações da teoria freudiana, nas mais variadas partes do mundo em que ela se instalou, incluída a lacaniana na França, não podem ser lidas sem levar em conta em qual dramática está enraizado o sujeito que a formulou.

“E, de fato, a psicanálise acabou se diversificando segundo as transformações da subjetividade moderna (o cúmulo, aliás, seria conceber esta plasticidade da psicanálise como desvios de alguma reta doutrina quando ela segue as exigências dos sujeitos que nela confiam). Não é de estranhar que a psicanálise norte-americana, por exemplo, encontre o essencial do sofrimento no drama narcisista, em que o sujeito sofre de ser para si mesmo um enigma que só o olhar dos outros pode resolver (....)
Do mesmo jeito, não surpreende que o sujeito europeu lide com os problemas de quem, aos 50 anos, mal saiu de casa: reminiscências que de fato são embaraçosas presenças. Justamente logo na Europa, a psicanálise descobriu com Lacan que o sujeito sofria, antes de mais nada, de seu apego ao ser que o passado lhe fornecia” (Calligaris, in Souza, 1999, pp. 22-23)

É por isso que a expressão retorno a Freud melhor ficaria representada se a escrevêssemos anexando o artigo, Um retorno a Freud, indicativo de sua dramática singular. Com o termo de retorno a Freud, Lacan ajudou a destacar que o destino da teoria psicanalítica (mas não só dela, é importante que se diga, no fundo é o destino de todas as teorias) depende mais dos acordos transferenciais do que epistemológicos. Que o drama dos conceitos é mais decisivo do que a trama dos conceitos.
Talvez pudéssemos concordar que a história da Psicanálise, de certo modo, aproxima-se mais da história de uma família, com suas dissidências, conflitos, pactos, do que a história de qualquer outra disciplina científica.
Kuhn em sua obra: “A estrutura das revoluções científicas”  demonstra exatamente este peso dos acordos da comunidade científica na evolução ou estancamento de uma ciência.

“A observação e a experiência podem e devem restringir drasticamente a extensão das crenças admissíveis, porque de outro modo não haveria ciência. Mas não podem por si só determinar um conjunto específico de semelhantes crenças. Um elemento aparentemente arbitrário, composto de acidentes pessoais e históricos, é sempre um ingrediente formador das crenças esposadas por uma comunidade científica específica numa determinada época.” (Khun 2007, p.23)

“O estudo dos paradigmas,(....) é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica determinada da qual fará parte mais tarde” (idem, p.30)

Freud (1914), por sua vez, também parecia estar, de um certo modo, advertido da questão, e resulta interessante observar o encaminhamento que ele dá a questão em seu texto: “A História do movimento psicanalítico”, no qual diz:

“Embora de muito tempo pra cá eu tenha deixado de ser o único psicanalista existente, acho justo continuar afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a Psicanálise, em que ela difere de outras formas de investigação da vida mental, o que deve precisamente ser denominado de psicanálise e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer.” (Freud 1914, p.18)

Aqui Freud, no momento em que se prepara para falar sobre as dissidências, assinala a importância de seu Nome, como referência centralizadora do corpus da teoria. Embora irá, ao longo de todo o texto explicar os conceitos fora dos quais não se pode dizer dentro do campo psicanalítico, não deixa de marcar que é seu Nome, em última instância, a referência mestra ou unificadora da teoria.
Examinar como se apóiam, no legado de Freud, as mais diversas construções teóricas, implica em considerar em qual lugar transferencial ele foi colocado, com que questões e imersos em qual dramática se dirigiram até ele.
De novo com Lacan, pudemos ver a diferença que faz ir a um Freud tido como o mestre morto, ou ir a ele como o pensador vivo.
Se Freud fica santificado (transferência hagiográfica), então resulta difícil não lê-lo como detendo uma verdade inabalável, tal como salienta Cifali

“Compreender que Freud não fala sempre do lugar da teoria lhe restitui, beneficamente, uma dimensão humana e cria um intervalo vantajoso entre suas palavras e o que seria, de repente, um ditado psicanalítico. Existe, sem dúvida, outra coisa a inventar, muito mais do que se revestir das plumas de um papagaio e crer que uma fidelidade passa necessariamente por um: “Ele disse.....então....”. Há certamente uma herança a conservar, mas estaria ela alojada somente em algumas poucas frases ou determinada por sua última palavra dita a propósito da educação?” (tradução livre) (Cifali 1982, pp.18-19).

Mas se o tomamos como pensador vivo, então há coisas a inventar a partir de uma herança legada.
Neste sentido, pensar a intersecção da Psicanálise com a Educação não pode se reduzir às poucas frases ditas por Freud sobre o assunto. Partir dele, até porque foi o primeiro psicanalista a se debruçar sobre o tema, é imprescindível, sem, entretanto, fechar-se nele.
O próprio Freud reconheceu seu amadorismo na questão da Educação e comemorou o acolhimento e investimento dado a Psicanálise por educadores, em particular Pfister e sua própria filha Ana, de quem esperava que viessem valorosas contribuições.

Mais uma vez, o livro de Millot, enquanto centrado num percurso exclusivamente apoiado nas palavras de Freud e identificado como A posição da Psicanálise no assunto, aparece representando uma posição singular na transferência com Freud. Posição construída dentro de um “Freud disse....logo....”, que deixa de considerar o amadorismo dele no assunto da Educação, bem como seu modesto investimento na questão educativa em contraste com suas esperanças nesta articulação. Ver este amadorismo e o baixo investimento, confessados pelo próprio Freud, poderia ter mantido em aberto a pergunta sobre as relações da Psicanálise com a Educação, em vez de fechá-la na questão da irredutível diferença que as separa.

Psicanálise e Educação ou Psicanalisar e Educar? História e estrutura.

Na tradição aberta pela obra de Millot, sobre o tema das relações da Psicanálise com a Educação, ficou patenteada a idéia de que Freud vai se desmotivando com relação ao tema da Educação, a partir da evolução de sua teoria, das novas descobertas e reformulações conceituais que viriam tornar obsoletos conceitos anteriores.
Deste modo, um texto como o “Moral sexual ‘civilizada’ e Doença nervosa moderna” (Freud 1908), marco inicial da abordagem direta de Freud sobre a Educação, é apresentado como um fóssil da teoria, que, como tal, cumpre apenas o papel de demonstrar o que já existiu, mas foi extinto.
Tal leitura evolutiva da obra freudiana merece ser considerada com cautela, pois se é verdade que é possível reconhecer giros na teoria psicanalítica e que esse reconhecimento é fundamental para não fazer coexistir termos que não se coadunam, é verdade também que esses giros não se dão sem que a nova posição conserve elementos da posição anterior.
A expressão além de (além do princípio do prazer) usada por Freud, ou mais ainda (para marcar, nos expressando apressadamente, que além do Édipo, do desejo, portanto, tem o gozo) usada por Lacan, parecem demonstrar esta estrutura de superação no interior da teoria, pela qual a nova posição se desdobra incluindo e modificando a anterior.
Mesmo a clássica superação da teoria da sedução, enquanto abordagem centrada num suposto assédio real feito pelo pai à filha, pela teoria da fantasia, que incluía o peso da imaginação infantil na instalação do traumático, pode ser revista a luz da própria transformação que o conceito de sedução tem após a formulação da noção de fantasia.
Se entendermos como sedução, não mais o comportamento específico de bolinagem da criança, mas, antes, o assédio do desejo parental sobre o psiquismo infantil, então temos que a idéia de sedução é reincorporada com acréscimos a nova posição paradigmática.
A revolução conceitual é re-evolução, volta-se a um lugar para evoluir, lugar este que não deixará de estar presente, de algum modo, na posição seguinte.
Num texto em que articula a etiologia das neuroses com uma crítica ao excesso de uma educação moral rígida, que censura, especialmente para as mulheres, qualquer manifestação relativa ao sexo, Freud marca sua entrada , como dizíamos, no tema da Educação.
Deste texto, precioso sobre vários aspectos, interessa-nos reter um ponto, crucial para entendermos a diferença que faz para o destino do campo da Psicanálise e Educação, se o entendemos como superado ou reincorporado a nova posição paradigmática. O ponto é o da articulação entre história e estrutura.
Freud desenvolve ali uma articulação, segundo uma política malthusianista, entre a necessidade social de controle de natalidade, dado os problemas sociais que acarreta o desregrado crescimento populacional, e o uso de uma moral sexual rígida, destinada a controlar o comportamento sexual na pretensão do referido controle.
Estava em jogo ainda, para Freud, a diferença entre neuroses atuais e psiconeuroses de defesa, como distinção importante para compreender a etiologia da neurose. Distinção que, como sabemos, será superada por ele em seguida, entendendo que mesmo um ingrediente atual não é capaz sozinho, sem ligar-se a algo do passado, de desenvolver um sintoma neurótico.
Foi mesmo em torno deste texto, fundamentalmente, que se dará a ruptura de Reich com Freud, alegando que este último recuara diante do impacto social de sua descoberta. Enquanto Reich seguiria considerando o peso de uma política específica na instalação da neurose, marcada pela condenação do comportamento sexual livre, o que lhe renderia uma clara inclinação para a discussão das políticas educacionais, Freud, por sua vez, caminhava na direção de compreender que em qualquer política em questão a sexualidade seria conflituosa, uma vez que ela é estruturalmente conflituosa.
Desta posição de Freud decorrem, no interior do campo analítico, duas interpretações distintas, que vão gerar dois destinos distintos para a questão da articulação entre história e estrutura.
A primeira, fundada numa maior ênfase na estrutura, com o conseqüente desapego às questões históricas, entendidas como menos relevantes, já que não determinam o conflito neurótico.
A segunda, que admite que a história, como uma contingência, tem um peso decisivo na instalação da neurose, e que o fato de que este elemento contingente não seja suficiente sem seu engate nas determinações da estrutura, não o desqualifica nem o torna irrelevante na análise.
Poder-se-ia dizer que a primeira interpretação não passa de um equívoco de compreensão, já que todo o ensino lacaniano, por exemplo, parece estar comprometido com a localização exata do valor do elemento contingencial e não em sua supressão.
De fato, foi Lacan (apud Soller,2005) que disse que “não há universal que não se reduza ao possível” (tradução livre), demonstrando, claramente, que o universal da estrutura não pode se dar senão em uma contingência específica. Não há estrutura em abstrato e caso houvesse “não seria possível combatê-la”, tal como “não se pode combater nada in absentia ou in efígie”.
Mas não poderíamos conjecturar, que a freqüência com que tem aparecido produções no interior do campo analítico, mais ou menos com o mote de “A Psicanálise Hoje”, indica um modo exatamente de denegar esta articulação?
Como em toda denegação, afirma-se para negar melhor, quer dizer, se a Psicanálise é sempre do hoje, afinal não se analisa nem o nem no passado, para quê ressaltar sua referência à atualidade? Talvez para denegar a tendência dos psicanalistas a regredir sempre aos mesmos temas, ou, ainda, para elaborá-la melhor , talvez.
No campo da Psicanálise e Educação a reincidência de temas, mais ou menos com o mote: Psicanalisar e Educar, tendidos a referendar a diferença entre as duas posições discursivas, realizados sem nenhuma referência à História, somente ao estrutural desta relação, demonstram um afastamento da análise do peso da contingência.
Esquecem que a análise é sempre do Um, quer dizer, entre outras coisas, que ela não pode ser do alguém, assim dito para evidenciar o abstrato desta posição. Mesmo que esse Um seja uma obra, como fez Freud com Schreber, por exemplo, ou Lacan com Joyce e que tenham buscado aí encontrar universais.
Ser do Um, ou do caso, para melhor dizermos, implica fazer predominar a clínica (sempre do caso) sobre a Ciência (sempre do geral, para não confundir com universal).
Que Freud tenha se referido a Educação que era a de sua época, não é senão uma referência ao Um, ainda que ele tenha podido encontrar aí universais, que lhe permitiriam transcender a Educação de seu tempo para postular algo sobre o Educar, posição discursiva, estrutural.
Embora muitas coisas deste texto tenham sido superadas pelo paradigma posterior da teoria, o peso do elemento contingencial na análise, não parece estar entre elas.
Se assim o fizermos, a análise do psicanalisar e educar corre o risco de ter o mesmo destino da psicologização da educação, ou seja, o de gerar modos abstratos de compreensão d”O” aluno e d”O” professor.
Em todo caso, é uma oportunidade para percebermos que o fato de Freud ou Lacan terem dito, não garante que a coisa tenha sido compreendida.
O efeito da obra de Millot no campo da Psicanálise e Educação parece ter sido o de consolidar o desejo de marcar uma diferença entre o psicanalisar e o educar, com a conseqüente desconsideração da possibilidade de análise de Uma educação, específica de um tempo e conjuntura política.

A colonização pedagógica da Psicanálise
Com quais questões parte Millot a Freud? Todo seu percurso neste texto parece estar referenciado pelas perguntas: Há um Tratado de Psicanálise sobre a Educação?  A Psicanálise teria uma Metodologia a oferecer a Pedagogia?
Para ambas ela concluirá com a resposta não, mas podemos nos perguntar sobre a natureza do campo de suas perguntas, segundo a perspectiva que trabalhávamos acima, destacando a questão da dramática dos conceitos e da questão transferencial com a palavra de Freud.
Estranha, de saída, a presença de uma pergunta sobre um tratado, noção que a própria Psicanálise estaria disposta a contestar.
Um tratado supõe uma posição consolidada sobre um assunto qualquer, sobre a qual até permite-se que se acrescente ainda algo mais, mas sem que se modifiquem as premissas fundamentais desta posição. Assim sendo, um tratado é uma noção que tende muito mais na direção de uma estrutura acabada, ou semi acabada, e que serve para dar referência sobre uma determinada posição teórica.
A Psicanálise é um work in progress, quer dizer, um trabalho que não cessa de se interrogar sobre sua adequação conceitual ao desafio que a experiência clínica lhe coloca. Muito embora isto não queira dizer que toda a teoria se modifique a cada instante, esta dinâmica indica uma maior aproximação na direção da incompletude, do inacabamento, enquanto estrutura da teoria.
Poder-se-ia dizer que o inacabamento é uma questão de qualquer disciplina científica, afinal todas estão sujeitas à refutação e modificação, mas esta característica de não-toda, no caso da Psicanálise, é mais do que uma característica entre outras, é sua própria vocação, enquanto define uma soberania da clínica sobre a teoria.
A Psicanálise evita a idéia de tratado porque defende a idéia de uma tratando, que vale para sua própria teorização, ou mesmo para aquela que ela pode produzir quando se inclina para um outro campo de experiência, por exemplo, a Educação.
Além disso, seria preciso perguntar porque que o fato de que não encontramos em Freud uma sólida posição a respeito da Educação, deve nos levar a concluir que A Psicanálise não tem, e nem deve se buscar em outro lugar tê-la, uma sólida posição acerca da Educação.
A pergunta que orienta a busca em Freud de um tratado sobre a Educação, só poderia encontrar uma resposta negativa, seja porque Freud, alegando seu despreparo para o assunto, preferiu não concluir, seja porque toda e qualquer debruçar-se da Psicanálise com relação a Educação buscaria ser deliberadamente não conclusivo.
O mesmo ocorre com a pergunta sobre a metodologia. Que a Psicanálise não tenha uma metodologia a oferecer a Pedagogia poderia se concluir diretamente do fato de que mesmo para ela mesma, a questão de uma metodologia, enquanto estratégia geral, válida para todos os casos, não deve ser colocada. Ainda que haja uma direção de trabalho que pode ser descrita em termos universais, sua aplicação jamais se encaminha sem importar a singularidade de cada situação.
Para a Psicanálise, a idéia de Técnica (e aqui passo apressadamente pelas diferenças entre técnica e método porque a compreensão desta diferença é irrelevante para este estudo e também porque ela é negligenciada pela Pedagogia, em geral.) é impertinente, exatamente porque em seu procedimento a psicanálise se ocupa de destacar a singularidade acima da generalidade. É isto que possibilitou Freud dizer que a Psicanálise tem que ser reinventada a cada vez, com cada paciente.  
O que queremos ressaltar aqui é que as perguntas com as quais Millot se dirige ao texto freudiano em busca de respostas, são perguntas que não se inspiram no campo psicanalítico, propriamente dito. Onde se inspirariam, então?
Tanto a noção de tratado, quanto a da ênfase no metodológico, cada uma a seu modo, constituem questões fortes do campo pedagógico, tal como ele se configura nos dias de hoje.
A do tratado, pela busca constante da perspectiva enciclopédica, figura emblemática do projeto iluminista, que talvez tenha na Pedagogia, dado o gosto deste campo pelas múltiplas referências às chamadas Ciências da Educação, que viriam para iluminar o ato educativo, senão o maior, pelo menos um de seus maiores representantes.
A busca de um tratado interdisciplinar para entender a Educação é um projeto forte da Pedagogia hegemônica.
A pergunta sobre a metodologia, por sua vez, marca também a predominância do caráter Técnico (escrito assim com maiúscula para indicar que se trata de uma perspectiva que põe em primeiro plano a intervenção, em detrimento da investigação) no universo pedagógico, tão facilmente constatável nos dias de hoje.
Assim, referenciada por estas duas preocupações, ainda que seja para responder não a elas,  a Psicanálise figuraria como mais uma disciplina entre outras a compartilhar o sonho iluminista e capitalista do empreendimento pedagógico.
Temos, então, uma colonização pedagógica da Psicanálise, que propicia, como não poderia deixar de ser, a pasteurização desta última.
O exemplo deveria nos deixar advertido do risco que consiste o amadorismo do psicanalista, neste caso nas questões da Educação, mas sem desestimular psicanalistas e educadores a explorar este fértil campo que se anuncia para esta intersecção.
A regra para este trabalho, o fio de Ariadne portanto,  parece ser a mesma que vale para o trabalho da teorização psicanalítica em geral, a saber: o rigor conceitual aliado a imprescindível humildade em reconhecer que minha eventual ignorância  particular não deve ser erigida em  princípio geral da teoria. Neste sentido dizer: UM retorno a Freud é primeiramente a admissão de que não posso jamais escapar de meus limites singulares.




Notas

1 Termo destacado por Renato Mezan em seu livro “Freud: A Trama dos conceitos” no qual diferencia o projeto de seu percurso por Freud da perspectiva lacaniana:
“O presente livro se funda sobre uma aposta:a de que é possível uma leitura pelo ângulo dos conceitos, isto é, uma abordagem que privilegia o aspecto sistemático da obra freudiana(....) retomando uma observação de Lacan (da qual só tive conhecimento depois da conclusão do trabalho) cabe notar que “ não se trata, para nós, de sincronizar as diferentes etapas do pensamento de  Freud, nem mesmo de fazê-las concordar entre si. Trata-se de ver a qual dificuldade, única e constante, respondia o progresso deste pensamento, feito das contradições de suas etapas” (Lacan, Lê moi dans la Théorie de Freud et dans la Technique de la psychanalyse, aris Seuil, 1978, p.178)




    Referências bibliográficas

CALLIGARIS,C. “A psicanálise e o sujeito colonial”, in:SOUSA,E (org.), Psicanálise e colonização: Leituras do sintoma social na Brasil. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999.
CIFALI,M. Freud pédagogue? Psychanalyse et éducation. Paris, InterÉditions, 1982.
FREUD,S. (1908) “Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna”, in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . vol. IX, Rio de Janeiro,Imago, 1996.
_________(1914) “A História do Movimento Psicanalítico”, in: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol XIV, Rio de Janeiro, Imago, 1996.
KUHN,T.S. A estrutura das revoluções cientficas. São Paulo, Perspectiva, 2007.
LACAN,J.(1966) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992.
_________(1964) Livro 11 Os quatro conceito fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1990.
MEZAN,R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo, Editora Perspectiva,1991.
MILLOT,C.Freud Antipedagogo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1987.